Pátria
Serra!
E qualquer cousa dentro de mim se acalma…
Qualquer cousa profunda e dolorida,
Traída,
Feita de terra
E alma.
Uma paz de falcão na sua altura
A medir as fronteiras:
- Sob a garra dos pés a fraga dura,
E o bico a picar estrelas verdadeiras.
◊◊◊ ◊◊◊ ◊◊◊
Tomo de empréstimo as palavras telúricas e magistrais do grande poeta Miguel Torga, no poema “Pátria ”, ao jeito de abertura desta breve alocução.
Poeta que, transmontano na sua vertical inteireza, muito acolheu no seu íntimo a Beira Litoral, dada a universalidade do seu verbo. Estudou, abriu banca de médico e viveu na mui bela capital que é a sempre cantada, a sempre amada Coimbra.
Estive na Vossa aldeia no passado dia 3 de Novembro, a convite da associação “União Progressiva”, aquando da realização do “Magusto” deste ameno Outono de 2007. O que quero dizer-vos é mais do que referir a excelência desse convívio. Excelência em todos os aspectos: a abordagem ao meio que íamos conhecer, a aprazibilidade do local do evento, a gastronomia de mão beirã, a celebração, digamos “comunal”, do magusto propriamente dito (que conhecia do saber teórico mas que nunca havia vivenciado), a sensibilidade das oferendas aos visitantes de primeira vez. Tudo teve um carácter de excelência.
Mas do que quero falar-vos mais vivamente é da generosa simplicidade do Vosso acolhimento; da superior singeleza do trato, de que nas Beiras se faz gala; da subtil delicadeza (ou será nobreza…) de do forasteiro fazerem um igual, um dos Vossos.
Permitam que evoque uma parte do histórico das minhas origens, para que melhor se entenda a emoção que coloco na escrita destas linhas.
Sou natural de Lisboa, embora sempre tenha vivido em um dos seus subúrbios operários - Sacavém. No entanto, quatro sextos das minhas raízes são oriundos da Beira Litoral, a que Colmeal também pertence. Minha avó paterna era de Pocariça / Cantanhede, minha avó materna de Castelões / Vale de Cambra, meu avô materno e minha Mãe de Forcadas* / Soure (* lugar já não existente, nominalmente, por “decreto” administrativo).
Durante muito tempo, em que não conhecia quase nada da região das Beiras, uma não clara dualidade de sentimentos me perpassava quando lia, conversava, sabia, escutava, factos de vária índole, normalmente no plano da Cultura, ligados à região. Havia, eu sentia, uma certa mística que me tocava. Mística que, embora se centralizasse na terna, eterna Coimbra, se alargava, de alguma maneira, a toda a região.
Minha Mãe ensinou-me a amar, desde muito criança, a canção e toada Coimbrãs. E a lindeza da região e suas gentes, guardadas em imagens e nas suas lembranças. Ensinou-me o orgulho juvenil de se considerar “Tricana”. Portanto, muito do meu sentir partia daí certamente. Sentir, que seria fortalecido já na juventude quando estudei, e tive o privilégio de conhecer alguns dos Cantores e Poetas, eméritos Trovadores da Lusitana terra dos míticos amores.
E fui a reconhecê-la “do Choupal até à Lapa” como dizia o saudoso amigo “Zeca” Afonso; fui a buscar os ecos da voz do Adriano, fui a respirar os rouxinóis “trinando” na guitarra, aquele “coração fora do peito”, do Paredes; fui a interiorizar o lirismo do “Penedo da Saudade” e o simbolismo da “Torre d’Anto”, lugares incontornáveis na vida e obra do então meu “poeta de cabeceira” António Nobre, e ícones imortalizados na sua obra de referência - “Só”, o livro mais triste de Portugal, no dizer do poeta. Fui à demanda da mítica Academia, das suas pedras, da “Cabra”...
Quando, já adulto, comecei a ser visita regular desta região centro norte (a partir do lugar de Pereira, freguesia de Mouronho, sito na zona em que o concelho de Tábua, a que pertence, confina com o de Arganil, tendo o rio Alva como fronteira natural, local onde o poeta de “Clepsidra” - Camilo Pessanha - buscou “cura de ares” para a “tísica” que “trouxe” de Macau, e aonde nas últimas duas décadas faço estadias) percebi que aquela empatia, que se manifestava no plano intelectual, digamos, tinha forçosamente a ver com as minhas raízes próximas, que se haviam tornado profundas dado o meu percurso cultural.
Foi então, quando comecei a usufruir da realidade das gentes e seus afectos, das suas venturas e desventuras, dos aromas, dos sabores; quando comecei a entender melhor a sofrença que este povo carregava, e as suas envolventes, que os três primeiros versos de Torga, no poema que refiro -
“Serra !
E qualquer cousa dentro de mim se acalma …
Qualquer cousa profunda e dolorida,”
- me mostraram, e sempre mostram, a genuinidade da afeição que tenho tentado relatar-vos.
Porque é facto que qualquer coisa em mim se acalma, quando chego às serranias, às terras do xisto, aos pinheirais (estes, até carrego no nome). E esse “qualquer coisa” voltou a manifestar-se assim que comecei a sentir a Serra, a ver as formas naturais e extrusivas do Xisto, onde alguma arte abstracta buscou inspiração, assim que se iniciou a aproximação ao Colmeal.
Mas digo-vos francamente, continua muito forte em mim o chamamento do Mar. Do Grande Mar Oceano, como diziam os Gregos antigos. Mar que não é um corpo estranho, antes é contraponto, desta Beira porque seu Litoral. Contraponto, enquanto linha de horizonte imaginário que se concebe ao alcançar os cumes das serranias. Não raras vezes me tem acontecido, trazido na frescura das brisas, sentir um discreto odor de maresia nos cimos da Serra do Açor, que visito regularmente a caminho da Fraga da Pena, da Mata da Margaraça ou do Piódão.
Um qualquer ilustre, que não recordo agora qual, terá dito (cito de memória): “A minha Pátria é onde estiverem as minhas raízes.” É disso que Vos falo efectivamente. Das raízes, dos afectos, do Povo que é o meu, o nosso, e que amo, como só ama quem sofre.
Reparo que já vai longa a “breve alocução”. Que hei-de eu fazer se ainda tenho mais para Vos dizer…
Como cheguei ao contacto das gentes do Colmeal.? Tenho tido o subido privilégio da amizade de uma Vossa notável Embaixatriz. Caríssima Amiga, companheira de trabalho de mais de três décadas, Maria Lucília Pinto Silva (membro dos actuais Corpos Directivos da “União”) sempre me foi falando das suas raízes, da beleza, dos usos e costumes da Vossa aldeia e região; foi-me convidando para realizações da “União” a que, por razões diversas não pude corresponder. Este ano proporcionou-se um primeiro contacto por ocasião do passeio ao Douro Vinhateiro. Conheci mais de perto as características da Vossa gente naquele grupo agradabilíssimo, e gostei. Tão simples quanto isso, gostei muito. Daí a ter anuído associar-me, a convite da Maria Lucília, à “União” foi um passo dado com naturalidade.
Como complemento devo referir que já conhecia a família da Maria Lucília - o Francisco Silva seu marido, também “lisboeta”, que se vê a olhos nus ser um apaixonado pelas coisas das gentes beirãs, no trabalho denodado, que sei ele ter, integrando as realizações da “União” (terá também sentido, faz muito tempo, a tal nobreza de do forasteiro fazerem um dos Vossos); o jovem Nuno Miguel seu filho, e a Senhora sua Mãe D. Aurora Pinto, que conheci pessoalmente em uma infausta data (a Vida é também feita de agruras…), mas que, mesmo assim, logo senti ser senhora da solidez característica das Beirãs. Não contactei pessoalmente com seu Pai, Senhor Joaquim Pinto, mas sei, a traços largos, ter sido esforçado trabalhador (a vida assim o exigia), extremoso homem de família, honrando assim o sangue Beirão que trazia nas veias.
Vou terminar falando da “União Progressiva da Freguesia do Colmeal”. Melhor dizendo, do que me parece ser o cerne do seu trabalho, e que testemunhei.
Num tempo em que se cultiva o esquecimento eu privilegio a memória, escrevi num texto faz pouco tempo. Penso assim porque tenho como boa a sabedoria da antiga Grécia, onde havia já quem alvitrava que (de novo cito de memória) -
“Os Povos que não cuidam do seu passado estão condenados a desaparecer”.
Por isso fiquei deveras agradado ao escutar, pela voz do seu Presidente, enquanto representante de um grupo de trabalho, o honrar publicamente a memória, sem enjeitar as dores, relevando as mágoas e dificuldades, do histórico das Vossas gentes e dos Pioneiros da Associação.
E, permitam que o diga, pensei: estou com gente boa (como dizia meu Pai)! Estou com gente cuja matriz é a minha. Respeitadora dos Homens que, com erros certamente mas com inumeráveis qualidades, foram a nossa génese. Homens que, por nós, afrontaram muitos sofrimentos e dificuldades. Carregaram em si, além das iniquidades havidas no país, uma guerra dita mundial, (alguns de nós, seus filhos, tiveram igual sorte, ainda que em outra escala) e arcaram com os escombros e misérias dela decorrentes.
Fácil é adivinhar que Vos falo de António Santos. Homem com quem tive contacto breve mas suficiente para entender que com ele, e com os seus companheiros e companheiras, a “União” vai poder continuar a somar anos à sua já provecta idade.
Com representantes assim empenhados, a aldeia de Colmeal, suas gentes e costumes, não estão condenados ao desaparecimento, enquanto entidade sócio-cultural, conforme avisavam os gregos antigos. Porque estas mulheres e homens sabem que “cuidar do passado” tem como objecto “bem entender o presente” e “melhor dimensionar o futuro”. Aqueles que sabem da justeza destes preceitos, sabem que estão “obrigados” a formar outros e novos companheiros e companheiras, para que a “caminhada” seja imparável.
- Colmeal, ditosa é a terra que tem filhos assim. A pequenez do território nada significa quando a dimensão humana é superior!
Deixem que encerre estas linhas com a citação de um poema apócrifo que, a julgar pelo estilo e ritmo (verso branco, grafia de tempos de respiração), deve ser dos Sec. XX / XXI, e autor anónimo. Este pareceu-me sintetizar cabalmente o contexto da Beira Litoral que tenho vindo a defender. Por isso nele me apoiei e Vo-lo dedico:
“de quando em vez volto costas à cidade
parto a encontrar o silêncio do côncavo dos vales
ansiando a presença redentora das serranias
busco a sapiência dos anciãos, os olhos livres dos pastores
o vento fresco assobiando por entre as fragas
a água ainda pura dos arroios, a sombra generosa dos carvalhos
e reacende-se o sentimento da pertença, sereno e antigo
vivificante, trave mestra da memória, essa alma
essa claridade, esse húmus, essa profunda voz da Terra
mas logo o Mar, esse sangue tonitruante, me reclama
desapiedado e urgente, futuro porque passado, ó dúplice sentir
se as raízes me convocam logo me incitam a partir
e resto dividido, caminhos redescobertos entre contrafortes
rapaces desenhando círculos intangíveis, leiras onde repousa o Sol
ou as barcas, os mastros, o sal curtindo as mãos e a palavra”
Agora termino. Termino enviando-Vos um terno e intemporal abraço. A todos.
Sempre!
Helder dos Santos Pinheiro
(5/6.Novembro.2007)
(helderpinheiro@netcabo.pt)
Nota Última :
estas linhas, escritas “ao correr da pena”, não pretendem ter, nem têm, um carácter digamos “literário”. São a assumpção pública de uma introspecção antiga e pretendem, tão-somente, ser entendidas como, no tom e na cadência, uma despretensiosa conversa de Amigos, à mesa de um outro magusto, ou encontro, em um qualquer tempo futuro.
H.S.P.
in Jornal de Arganil, de 22/11/2007Fotografias: http://upfc-colmeal-fotos.blogspot.com