domingo, 2 de março de 2008

Reportagem Museu das Aldeias Vivas

"O céu, o sol, a lua e a terra, aqui tudo é nosso"

Numa altura em que arranca o inédito e inovador projecto de criação do Eco-Museu Interpretativo das Tradições do Xisto e da Natureza na serra da Lousã, a NS' visitou as aldeias onde incide a iniciativa

Entre as onze crianças que há 65 anos residiam em Aigra Nova, freguesia e concelho de Góis, cirandava pela aldeia Júlia Maria Nazaré. A única menina que queria frequentar a escola. Chegou a concluir a terceira classe, mas os pais não lhe permitiram que continuasse os estudos. Chorou dias a fio. Hoje apenas recorda o sucedido, mas já não com tristeza, porque a vida que levou e leva preenche-a. Dona Júlia, como é carinhosamente conhecida na região, é a única habitante permanente da aldeia. Atravessou muitos processos de mutação que atingiram as populações serranas e o País. Aos 75 anos, diz-se preparada para o novo desafio.
A aldeia faz parte de um projecto inédito e inovador de criação de um Museu das Aldeias Vivas da Serra da Lousã e a ADXTUR - Agência Desenvolvimento Turístico que promove a Rede das Aldeias do Xisto. Aigra Nova, Aigra Velha, Comareira e Pena são quatro das aldeias da rede de 24 inseridas no projecto de promoção de 16 concelhos da Região Centro.
Ao longo dos anos, dona Júlia foi lendo tudo a que tinha acesso, livros, jornais e revistas. Era a pessoa mais bem informada da aldeia. E a que lia e escrevia as cartas dos habitantes.
Hoje está apta para receber visitantes e turistas que a queiram acompanhar nas tarefas diárias enquanto pastora e contadora de histórias. E que histórias! Estar sozinha na serra com dezenas de cabeças de gado e de repente surgirem lobos vindo de todos o lado. Ou eles, ou ela, para já não falar das cabras. Mas dona Júlia consciencializou-se de que o lobo é medroso e enfrentou a situação. Esta, e dezenas de outras vezes. "O lobo uiva para demarcar território, mas é cobarde. Ataca os animais, não os homens. Há apenas que Ter capacidade para lhe fazer frente." A pastora gritava: "Agarra, agarra o lobo desgraçado e malvado." Os cães começavam a ladrar e os lobos fugiam.
Em Aigra Nova fica agora instalada uma das lojas da Rede da Aldeia do Xisto onde são vendidos produtos genuínos de qualidade seleccionada. Ali não estão à venda as meias e luvas que dona Júlia fazia enquanto guardava os rebanhos na serra, não por falta de qualidade, mas porque já não tem paciência para as tricotar. No entanto, é possível encontrar nestas lojas artigos feitos à mão por velhos e novos artesãos, que habitam nas 24 aldeias da rede, inspirados pelas gentes e cultura da região. Um feliz namoro entre a tradicional e moderno. Autênticas reinterpretações de processos e materiais tradicionais, como o linho e a forma como eram e é ainda hoje tecido, que dão origem a peças de design contemporâneo de inspiração rural. Além dos têxteis, do artesanato tradicional e do que envolve materiais endógenos, mas que deram origem a peças alternativas, poderão ser adquiridos queijos, vinho, ervas aromáticas, doçaria regional, acessórios de moda e de decoração. No primeiro andar da loja, funcionará a sede da Lousitânea. Nas traseiras, o museu-sede dos núcleos interpretativos. Nada que assuste dona Júlia. Antes pelo contrário: "É chegado o momento de revitalizar a terra", diz a pastora à NS'.
O Museu das Aldeias Vivas será constituído por 15 núcleos que poderão ser visitados autonomamente, na companhia de habitantes ou guias, entre eles dona Júlia. Os turistas e visitantes poderão ainda cruzar-se com a filha de dona Júlia, Lurdes de Nazaré, e o genro, Manuel Claro. Vivem actualmente em Arganil, mas já passam grande parte do tempo na aldeia a tratar do mel, do fabrico do mel, do fabrico da broa e de outras actividades ligadas ao campo e à vida na serra. Com este projecto pensam instalar-se definitivamente na aldeia e tornar-se guias animadores dos ateliers e oficinas que vierem a realizar.
Manuel Claro é outra força viva da natureza. Conhece a serra como ninguém e os perigos que esconde. Por lá coabita com cobras venenosas. Quando elas ousam aproximar-se, estuda-lhes os gestos, conhece-lhes as manhas e troca-lhes as voltas. Uma acabou num frasco de álcool, mesmo antes de Manuel Claro ter a certeza se tinha ou não sido picado por ela. Foi a única vez em que julgou ter sido vencido. Casa ser humano parece conhecer os seus limites e saber qual o papel a desempenhar na casa-mãe que é a serra. Nunca por ali se ouviu falar de finais trágicos para histórias que tiveram enredos complicados. Todas acabam com finais felizes.
Os espaços museológicos não são estanques, têm vida. São utilizados nas terefas diárias dos residentes, que no conjunto das quatro aldeias não chegarão às duas dezenas. Homens e muleheres que acreditam e vêem com bons olhos a chegada de novos moradores. "Há casas disponíveis e começam a surgir oportunidades de emprego." Quem disso parece não ter dúvidas é Elsa Maria Claro, mãe da única família que reside em Aigra Velha. Mulher de alma quente e de mãos frias, boas para produzir o queijo de cabra, cuja venda garante parte do sustento da família, Elsa Maria diz viver num oásis.
"O céu, o sol, a lua e a terra, aqui tudo é nosso", afirma de sorriso rasgado na cara crespada pelo sol de Inverno a trabalhadora rural que explode de orgulho ao ouvir da boca dos três filhos que este é o lugar onde querem ficar para trabalhar e constituir família.
Alexandra, a filha mais velha, estuda Línguas e Relações Internacionais na Universidade de Aveiro e já trabalha. Pese o facto de já falar inglês, francês, alemão e um pouco de árabe, só não voltou já para a terra porque, além de querer acabar o curso, assumiu a responsabilidade de acompanhar os irmãos na cidade até ao final dos estudos. Pedro, 17 anos, estuda Design de Equipamento. Mas aos fins-de-semana tem trabalho assegurado numa empresa de animação turística sedeada em Góis, onde é monitor de desportos de aventura. Há ainda Catarina, de 16 anos, a estudar Artes Visuais. Tal como os irmãos, a jovem sonha em regressar rapidamente a Aigra Velha, onde pretende aliar-se à equipa de desenvolve o projecto da Maternidade de Árvores - outros dos núcleos interpretativos inseridos neste museu vivo, na aldeia vizinha de Aigra Nova.
Há ainda o pai, André Claro, 47 anos. Não quer ser identificado como o chefe da família, mas apenas como um elemento de uma casa onde existe apenas uma carteira e a liberdade para que cada um escola o seu caminho. André foi sempre incentivado pelo pai a estudar. Concluiu a Quarta classe com distinção na escola primária de Ponte do Sótão. Tinha de por lá ficar toda a semana, por causa da distância da aldeia onde vivia. Apesar da insistência do pai e dos professores para que continuasse, optou por se dedicar à pastorícia.
Aos dez anos já percorria sozinha a serra com um rebanho de 400 cabeças de gado. Para vigiar as cabras contava com a ajuda de binóculos. Só de pastagens a região dispunha de cerca de 500 hectares. Contudo, nunca deixou de ler e estudar. Ainda hoje o bichinho pelo conhecimento lhe corre nas veias. Participa em acções de formação vocacionadas para a agricultura, pastorícia, apicultura e animação turística.
Elsa Maria diz que os filhos saíram ao pai, "são inteligentes, têm gosto por aprender e são empreendedores". Envolta no dinamismo dos restantes membros da família, esta mãe desdobra-se para dar conta de um rebanho de 50 cabras, que ordenha à mão para obter o leite com que fabrica o queijo artesanal. Orienta ainda as progenitoras para que, de forma planeada, tenham cabritinhos pelas alturas em que são mais procurados, na Páscoa e no Natal.
Esta aldeia, só por si e pelo trabalho desenvolvido pela família, alberga alguns dos 15 núcleos do Museu das Aldeias Vivas. A família está expectante em relação ao projecto. Há muito que recebem visitantes e turistas que procuram desvendar os segredos da serra e destes povoados que hoje constituem a Rede das Aldeias do Xisto. Em breve contará com uma nova família que pretende fixar-se no local. Apesar do sossego em que dizem viver sozinhos, "num paraíso natural onde ao acordar de manhã ouvimos os rouxinóis a cantar à janela", é de braços abertos que recebem vizinhos. "Este é o momento de inventar o processo de desertificação e abandono total das aldeias da serra."


A rede dos núcleos interpretativos
Em Aigra Nova ficará instalado um museu-sede dos núcleos vivos. Já visitável, mas ainda em mutação, dispõe de cinco temáticas: uma exposição permanente sobre a rede das Aldeias do Xisto; outra também fixa sobre a ocupação humana da serra da Lousã, com destaque para a importante actividade dos neveiros reais; haverá ainda um cantinho especial dedicado ao território base dos diferentes núcleos, Aldeias Vivas, Aigra Velha, Aigra Nova, Comareira, Pena e a zona envolvente dos imponentes Penedos de Góis e ribeiras adjacentes. Olhar atento ainda para a vida de uma casa típica de Aigra Velha: pequena, onde a cozinha se embrenhava no quarto, mas havia um espaço sagrado para esconder os alimentos. O espaço disporá de condições para albergar exposições temáticas e temporárias.
Depois é ir para a rua e descobrir a alma da serra, num raio de poucos quilómetros de fáceis acessos, sobretudo a pé. Em todas as aldeias existirá um painel informativo com a rede dos núcleos interpretativos e locais onde obter folhetos e outras informações. Se optar por um guia, a Lousitânea, através de marcação prévia, disponibilizará um que poderá ser um habitante de uma das aldeias com formação para o efeito.
Prepare-se para cruzar ou acompanhar por exemplo a Elsa Maria, o André Claro, o Manuel Claro, a dona Júlia, a Lurdes de Nazaré, ou outro qualquer habitante, enquanto visita p Moinho de Água de Rodízio, na Ribeira da Pena, em Pena. No forno comunitário, em Aigra Nova, ajudará a cozer, ou comer, a broa de milho e centeio, por vezes recheada de sardinha, bacalhau ou chouriço.
Quem optar por permanecer uns dias na região, já dispõe de alojamento nas aldeias da pena e da Comareira. Em breve haverá um Parque de Campismo Rural em Aigra Velha. Os percursos poderão ser feitos a pé, em BTT ou de automóvel. Alguns já se encontram sinalizados. Andar-se-á de burro de aldeia em aldeia, pois o projecto inclui a criação de uma Reserva de Burros em Aigra Velha ou na Comareira.
in NS', de 1/03/2008

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