quinta-feira, 22 de maio de 2008

O fio de ouro que corre na Cabreira

Entre o cenário maravilhoso que a rodeia e o rio que a percorre, a Cabreira guarda um pequeno tesouro. O lagar de varas, outrora fundamental na aldeia, é hoje visitado por centenas de turistas, que aprendem como se fazia o azeite antigamente.

O caminho para lá chegar não é fácil. Cansa-se o automóvel de subir pelos trilhos da Serra da Lousã e cansa-se o homem de fazer todas a curvas de uma estrada que o alcatrão roubou ao verde da montanha. Mas o cenário à chegada compensa cada metro de esforço.
Na Cabreira, o tempo parece ter parado. As águas do rio Ceira correm livres, límpidas e geladas por debaixo da velha ponte. As casas, os campos, as gentes são iguais a qualquer outra aldeia do concelho de Góis.
Mas a Cabreira guarda uma riqueza singular, única no país. É lá que existe o único lagar de varas que ainda funciona em Portugal, inalterado há 130 anos.
A sua origem perde-se no tempo. O primeiro registo que há é da sua venda em hasta pública, no dia 2 de Março de 1876. Mas o lagar já havia sido construído antes, pelo povo, que o entregou à gestão paroquial. Noutros tempos, já foi personagem central da vida na aldeia. Hoje, só é utilizado pelos participantes da Rota do Azeite, promovida pela empresa Transerrano.
Algumas das últimas pessoas a visitar o lagar vieram de Oeiras. Paulo Silva, da Transerrano, explica que, quando começou a Rota do Azeite, "não foi fácil" para as pessoas da terra entender a atenção dada àquele espaço: "as pessoas não entendiam que podia haver gente de fora que quisessem ver uma coisa a que eles já não ligam".
Mas a ideia pegou e, desde 2002, uma média de "400 a 500 pessoas por ano" visitam o lagar da Cabreira. Aí, podem ver como se fazia o azeite há 130 anos atrás.

Muito trabalho para pouco líquido

O processo é moroso. São cerca de sete horas desde que as azeitonas são postas no pio (local onde são moídas) até se transformarem em azeite. O primeiro passo é a moagem. Vítor, o "moço" do lagar, controla a abertura da comporta que deixa passar a água. Quando ela está aberta, a força do rio faz mover a roda de ferro que, por sua vez, faz rodar as galgas: duas mós dispostas na vertical. Cada moagem leva, em média, cerca de 270 quilogramas de azeitona. O resultado são, aproximadamente, 27 litros de azeite.
Já com a azeitona moída, a massa é transportada para a parte superior do lagar. O senhor Luciano é o "mestre". É ele quem mete a massa nas ceiras, que vai empilhando. Já com a ajuda do "moço", coloca a dufa (peça de madeira circular) e os malhais (barrotes de madeira) em cima das ceiras.
Está na hora de descer a vara. No lagar da Cabreira existem duas. Dois enormes troncos, um de sobreiro, outro de carvalho. Vítor, com a ajuda de outro homem, faz rodar o fuso, descendo a vara.
A primeira tentativa corre mal. As ceiras não estavam bem empilhadas e começam a cair para o lado. Trabalho redobrado. A vara tem que voltar a subir, as ceiras têm de voltar a ser colocadas umas em cima das outras, assim como a dufa e os malhais. Os corpos já estão suados e ainda falta muito para haver azeite.
Os homens voltam a descer e fazem baixar a vara. Desta vez tudo corre bem. O grande tronco desce e prensa a ceiras. Na tarefa - tudo no lagar tem um nome, a tarefa é o sítio onde fica depositado o azeite - começa a cair o azeite mais puro (virgem), que ainda não esteve em contacto com a água.
A vara torna a subir. Mais umas voltas ao fuso para Vítor. Agora é altura de caldear massa, com água a ferver. Neste momento, água e azeite estão misturados na tarefa. É preciso esperar cerca de duas horas para que os dois líquidos se separem. O azeite, mais leve, fica em cima. A água em baixo.

A mestria

É aqui que entra em acção a sabedoria do "mestre". Para Luciano, esta é parte de "maior responsabilidade". No fundo da tarefa, há um buraco por onde sai a água. Luciano tem saber onde está a água e onde está o azeite. Para isso conta apenas com a ajuda de uma vareta, feita de pau de oliveira. "Com prática, não custa nada", diz. Mas a verdade é que é preciso uma sensibilidade especial - quase um dom - para definir qual é o momento em que se fecha o buraco da tarefa, para não deixar sair o azeite, uma vez que tudo é feito "às escuras".
Com 58 anos, Luciano Martins trabalha no lagar da Cabreira há sete. E nem foi difícil aprender. "Estive cá três dias", conta. Menos fácil parece ser encontrar um sucessor. Vítor já está no lugar "há muito tempo" mas ainda não conseguiu apanhar o jeito.
Se, antigamente, houve anos em que o lagar chegou a funcionar 15 dias seguidos, agora o movimento é muito menor. Este ano, trabalhou apenas cinco vezes, e todas no âmbito da Rota do Azeite. "Isto dá muito trabalho e as pessoas preferem pagar e ir para lagares industriais", explica Luciano.
Mas o lagar lá está, teimando em receber atenção e continuando a fazer aquilo para que foi construído: azeite. E do melhor e mais puro que existe.


Construído pelo povo

O lagar foi construído pelo povo, que o entregou à gestão paroquial, mais concretamente ao Santíssimo Sacramento da freguesia do Cadafaz, que o vendeu em hasta pública no dia 2 de Março de 1876, juntamente com outros bens. Estes foram adquiridos por José Francisco Ribeiro Martins, pela quantia de 472.100 réis, que, seis anos depois, os doou ao povo da freguesia do Cadafaz.


Há cerca de 50 anos, houve um dilúvio que destruiu todo o lagar. O actual lagar foi depois reconstruído nas ruínas do anterior, tendo entrado em abandono mais tarde. O lagar antigo não tinha o pio dentro do edifício. Este estava junto ao rio, entre o moinho e o lagar. Era servido por uma levada de água do rio, entre o moinho e o lagar. Só depois era levado para o lagar para ser prensado.



Era o vinho senhores...

Se hoje o lagar não é praticamente utilizado, alturas houve em que quase não parava. Chegava a funcionar quatro meses seguidos. Ora, o trabalho no lagar é muito duro. E, nessas alturas, os homens trabalhavam sem descansar. Até dormiam - pouco - dentro do lagar. Quem ia fazer o azeite levava, por norma, um farnel, para os trabalhadores do lagar comerem, e vinho, para acompanhar. Cansados e quase sem dormir, o vinho era o combustível que os mantinha acordados. "Bebiam tanto vinho que acabavam por acontecer histórias engraçadas", diz Paulo Silva, lembrando uma situação em que os homens se distraíram uma grande parte do azeite "foi pela tarefa abaixo". Curioso também era o facto de, antigamente, as mulheres não poderem entrar no lagar.


Através da Rota do Azeite, a empresa Transerrano leva os clientes a visitar e participar no processo de fabrico artesanal do azeite no vale do Ceira, desde o processo de apanha da azeitona, transporte, selecção, até à prensagem num lagar de varas movido a água. O programa contém ainda uma tibornada e outras iguarias regionais, uma refeição que era servida num velho lagar de azeite. Há animação com música tradicional, um ponto de venda de artesanato e claro muito azeite.
Vasco Garcia
in Diário As Beiras, de 10/05/2008

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