Mega
Nasci em Lisboa, mas é daqui que venho: Mega Fundeira, concelho de Góis, distrito de Coimbra. "(...) Não somos brasonados, não há quadros nas paredes, nem nomes compridos - a bisavó, desdentada e rugosa, é onde vai a foto mais amarela. Há no entanto histórias que vão mais atrás. Ouço-as, os olhos húmidos que lhes imagino, a humildade e a inteireza anónima, as mulheres batidas no mundo cão, a dignidade de um pinheiro, os homens, salteadores, o pau debaixo do braço, a faca à cinta, noites negras pelas encostas, cortadas do vento cru e desumano das serras. O rosto, crestado, nunca, raramente se toca no rosto. Lavra-se e colhe-se, rouba-se e bate-se, monta-se e nascem filhos, entre vinte abortos, às vezes mais. Ainda o gozo da vingança, a minha gente desprezada, olhada de cima, sem posição, a falar alto demais, a emborrascar-se nas tascas, muito vermelha. Acachapada nos limites do realismo, do egoísmo sem tapetes, fofos. Comezinha, nas casas negras, a ratar os grãos nos soalhos ensebados, a vida alheia, anos maus, as gotas de azeite que pingam, ou não pingam, buracos, o panelão negro ao meio, o cepo de cortiça, mobílias estremes que parecem esboço. Desconfiada, arisca, melindrada, mas só raras vezes terão mordido quem o merecia. (...)" Excerto de «O Gozo», in 'A Caminho do Paraíso', 2001.
in http://olhares.aeiou.pt
Etiquetas: fotografia, mega fundeira
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home