sábado, 26 de maio de 2007

Ser escritor das coisas que se escrevem

Por iniciativa da Biblioteca Municipal António Francisco Barata, realizou-se, de 2 a 6 de Maio, a XI Feira do Livro de Góis, sob o signo dos escritores do concelho. Foi uma iniciativa muito interessante e meritória. O reconhecimento e a valorização contribuirão certamente para estimular a produção dos autores e, nessa medida, para enriquecer o património cultural do concelho.
O cconceito de escritor anda normalmente associado ao de escrita literária, de ficção e profissional, nas múltiplas modalidades e estilos que pode assimir.
Por esta razão, no contexto das "Conversas com", que o programa da feira contemplava, vários intervenientes sentiram necessidade de explicar o género de escrita que praticam, concluindo que não se consideram escritores, escrevendo, embora, digo eu, com propriedade e elegância. Pessoalmente, feita a dita reflexão sobre o conceito de escritor, agradeci o atributo, dizendo que me sentia muito honrada e lisonjeada por ser considerada escritora sem escrever escrita literária. Não por mim, que a minha imodéstia não vai tão longe, mas pelo simples facto da situação traduzir conquista da escrita na sociedade portuguesa.
Deve ter sido isso memso que o jovem André Tiago Paiva, aluno do 8º A, da Escola EB 2/3 de Góis, quis dizer quando, numa das "conversas com", afirmou perentório: "Eu sou escritor das coisas que escrevo".
Sem dúvida! A escrita é um poder e um instrumento de exercício do poder. Poder simbólico e material que, durante séculos, foi exercido apenas pelas elites que sabiam ler e escrever e que, ainda hoje, tende a construir privilégio de poucos. Apropriar esse poder é um desafio e uma obrigação.
Escrever começa por ser uma experiência criativa fascinante e intelectualmente muito estimulante. Se não vejam-se a complexidade aliciante e as múltiplas valências que a escrita envolve. Ter uma ideia que se quer partilhar, e decidir com quem a partilhar e com que objectivos, para definir as características da escrita. Depois, agarrar as palavras e senti-las, crítica e amorosamente, como quem afaga as cores que falarão na tela, para escolher as mais adequadas à mensagem e aos sentimentos a suscitar. Com as palavras, construir frases, períodos, parágrafos e capítulos entrecruzados e prenhes de sentido, qual edifício bem alicerçado e estruturado. Finalmente, proceder aos acabamentos que a própria escrita revelou necessários, lendo, reescrevendo, voltando a ler e a reescrever. Escrever é um jogo mágico muito enriquecedor e gratificante, porque a linguagem escrita exige que se pense sobre ela, o que normalmente não fazemos quando falamos. É uma fonte inesgotável de criatividade e prazer. Como pela leitura, criado o gosto, vem para ficar!
Tendo presente que existem várias formas de escrita, cada uma com as suas características e finalidades, o que importa é escrever. Escrever literatura. Por que não? É o que estão a fazer as jovens Lúcia Martins e Isabel Martins. Motivadas pela leitura assídua e profícua, ousaram convocar a imaginação e o teclado para dar corpo e asas à inquitude e aos ideais da juventude, mas também para concretizar o direito próprio e inalienável à auto-expressão pela escrita. Desejo-lhes a maior realização e muito sucesso. Na ausência de vocação para a escrita estética, escrever textos práticos, tomando um tudo nada ou muito do tal poder que a escrita representa, para intervir socialmente, e para conferir relevâncias e visibilidade às experiências e realidades que não falam de si, permanecendo silenciadas e silenciosas, apesar da importância social de que se revestem. Como diz Maria Irene Sousa Santos, uma autora que costuma debruçar-se sobre a escrita numa perspectica sociológica, (...) escrever a vida da gente é um primeiro passo para a compreensão do mundo irrecusável em que vivemos - para a compreensão necessária à vontade de mudar a vida (...)1.
Entre outras finalidades, escrever, ainda, para reflectir, e para perpetuar e guardar memória do que cada um considere não dever ser esquecido, nomeadamente por fazer parte do património colectivo ou das raízes da identidade. Sem prejuízo do interesse crescente da oralidade, devido à terciarização da vida e da economia, que exige competências comunicativas muito mais amplas e assertivas, costuma dizer-se que as palavras leva-as o vento. Dito de outro modo por Alvim Toffler, a recordação social contínua a viver, a privada não compartilhada morre com o indivíduo 2.
Literatura, textos funcionais ou científicos, todos os géneros são legítimos, e escrever é um imperativo. Até que todos possam afirmar, como André Tiago, "Eu sou escritor das coisas que escrevo".
Lisete Matos

1 Maria Irene Ramalho de Sousa, "A Escrita na Vida da Gente: Sobre Autobiografias Operárias", in Revista Crítica das Ciências Sociais nº 4/5, Coimbra, 1980, p. 126-127.
2 Alvim Toffler, Terceira Vaga, Livros do Brasil, Lisboa, 1984, p. 175


in A Comarca de Arganil, de 22/05/2007

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