quinta-feira, 15 de maio de 2008

Caminhada «Trilhos da Ribeira de Ádela»: um olhar

1. Do social e do económico

Conforme divulgado, a caminhada partirá de Cepos, passando por Ádela e Açor para terminar no Colmeal, simbolicamente reabraçando quatro povoações com passado densamente interpenetrado, através da proximidade geográfica, das trocas produtivas, da escola comum, e dos laços familiares e afectivos que o tempo foi urdindo e persistem.
Enquanto meios ao serviço da relação e da interacção social, os caminhos da caminhada eram os utilizados pelas populações de Ádela e Açor para se deslocarem a Cepos e à sede Freguesia (Colmeal), e o inverso. A acompanhar a morfologia do solo, são caminhos ascendentes e descendentes, que conduzem ora ao topo de montes arredondados pela erosão dos tempos, de onde se avista um horizonte de beleza sem fim, ora ao âmago de ribeiras fundas, que espreitam o sol por nesgas de azul sereno. São caminhos de piso terreento e macio nuns sítios, pedregoso e duro noutros, aqui atapetados de caruma e outras folhas caídas, ali, de pinhas roliças e pedras abaladiças, que dá vontade de chutar, mas não convém, sobretudo as últimas!
Sendo muito aprazível do ponto de vista paisagístico e ambiental, o percurso é igualmente muito elucidativo sobre os modos de vida das populações e sobre o esforço físico que lhes subjazia, no passado. Assim, quando o cansaço ameaçar e os músculos doerem, talvez ajude pensar que caminhamos sendo portadores de objectivos leves de prazer e lazer, enquanto as pessoas que os abriram e trilharam, com os pés descalços ou mal calçados, os percorriam com objectivos de trabalho e sobrevivência, carregando às costas ou à cabeça pesados fretes. Eram idas e vindas incontáveis, subindo e descendo, a fim de cultivar os “combaros” e açudes dispersos pelas encostas e ribeiras fragosas; transportar as colheitas para casa; moer o milho (de Açor e Ádela chegava-se a ir moer ao Colmeal), e voltar com a farinha; trabalhar aqui ou ali; transportar sacos de areia e cimento, traves gigantescas, máquinas de costura e outros equipamentos ou móveis; ir a Fajão, à Pampilhosa da Serra ou a outras localidades; devolver a vida ida à terra, transportando os defuntos para serem sepultados (de Ádela e Açor para o Colmeal); ir à missa ao Domingo, deixando as tamancas escondidas numa silveira que havia no Porto Ribeiro (Colmeal) ou à entrada de Cepos; anualmente, para ir e vir das Festas, uma das poucas oportunidades de divertimento de que as pessoas dispunham. Em Açor festeja-se Nossa Senhora da Saúde, em Ádela, S. Lourenço e a Senhora da Luz, nos Cepos o Santíssimo Sacramento e, no Colmeal, o Senhor da Amargura, cuja capela se situa nas Seladas, onde decorrerá o almoço da caminhada. Ambas as freguesias têm como padroeiro S. Sebastião e continuam a dar o Bodo.
Antes do êxodo para a cidade e outras paragens, era um fervilhar de gente pelos caminhos, e era tanto andar que, como assinala Maria Beatriz Rocha Trindade, uma investigadora da Universidade Aberta que estudou o fenómeno do regionalismo, o espectro permanente do isolamento e do “andar a pé” ainda hoje se mantém vivo na memória das gentes da serra (“As Micropátrias do Interior Português”. In: Análise Social, nº 98. Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1987). Vê-se, pelo que se acaba de escrever! Com excepção para as idas à missa e às festas (e, ainda assim, poderia ser necessário levar ou trazer alguma coisa), nunca se andava de cabeça ou costas folgadas, especialmente no regresso a casa. Se outra coisa não houvesse, uma lanhita manhosa servia perfeitamente para matar dois coelhos de uma cajadada só. Apesar da infância poupada, ainda hoje há quem regresse com uma pinha ou um pauzito na mão! Coelhos… é que já não há!
Os caminhos da caminhada eram também os dos vendedores ambulantes, dos compradores e capadores, do carteiro (Colmeal-Açor-Ádela e o inverso), e das crianças de Ádela e Açor, que iam à escola em Cepos por razões de maior proximidade. Os dois grupos juntavam-se ou separavam-se na Mata (descendo de Cepos, sítio onde se encontra o primeiro curral). Crianças que eram, despediam-se, às vezes, à pedrada, tudo para dar continuidade às palmatoadas e ponteiradas que tinham apanhado na escola! Todos recordam com carinho as amizades desse tempo. Alguns recordam com mágoa o medo que tinham do professor/a, o trabalho que os esperava no regresso e outras vicissitudes menos agradáveis. Outros, ainda, recordam com gratidão os almoços ou as merendas à fogueira quentinha da Etelvina, da Aldina, do “Ti” Zé Dias ou do “Ti” Alfredo Costa; as saias compridas que uma senhora nos vestia, enquanto secava a nossa da chuva do caminho; a tal senhora da rua dos Trigais que nos induzia a responder-lhe que o Zairito era o cão do meu tio; o susto sofrido quando o dono de um castanheiro desatou a gritar ameaças de dentro do respectivo toco, porque lhe estávamos a roubar as castanhas, abrindo com jeitinho os ouriços ainda pouco sorridentes; o contentamento do dia em que não pudemos ir à escola, porque um dos pontões sobre a ribeira tinha abalado com a enchente. Eram pontões de pinheiros atravessados e tábuas ou pedras a servir de piso, não raro feitos ou consertados pelas mulheres, na ausência dos homens. Foi então (1955) que foram construídos, mediante co-financiamento das Juntas de Freguesia de Colmeal e Cepos, os pontões em cimento que atravessam a Ribeira da Fonte Salgueira no caminho entre Ádela e Cepos (descendo de Cepos, segundo curso de água), e sobre a mesma ribeira e a do Sangrinheiro, mais abaixo, bem perto do sítio onde se juntam para formar a Ribeira de Ádela, no caminho Açor-Cepos. Foi uma obra conjunta muito expedita e rápida!
Na zona como na região, em geral, a actividade económica dominante era a agricultura de subsistência e a pastorícia. Pelos caminhos, poderão ser observados os “combaros” e lameiros, muitos deles já pouco perceptíveis por baixo dos matagais e silvados que os invadiram, embora se note, a reflectir o amor desmedido à terra-solo, que alguns têm sido limpos. Junto aos terrenos, encontram-se os currais, resistentemente ainda de pé ou já desmoronados. Serviam, essencialmente, para abrigar o gado que era deslocado para os terrenos mais distantes, a fim de por lá roer as ervas daninhas, e produzir o esterco necessário ao cultivo da terra. Dado que também serviam para guardar utensílios, é frequente conterem, por exemplo, velhas escadas da apanha da azeitona.
Apesar da escassez e do envelhecimento da população residente, a que acresce a opção natural dos activos pelo trabalho nos serviços, na exploração madeireira ou na construção civil, junto às povoações, os terrenos encontram-se mais limpos e um ou outro cultivado. Em geral, cultivam-se os de rega mais fácil, agora que a água falta e os poços e levadas se encontram degradados. À saída de Açor, a caminhada utilizará como percurso a levada da Fonte do Açor ainda activa. Esta levada tem o privilégio de vir mencionada num livro de investigação sociológica em que participou Augusto Santos Silva, actual Ministro dos Assuntos Parlamentares. Infelizmente, há uns anos foi soterrada em grande parte da sua extensão. Na ponta dos bocados, sobre forcões e varas, para ocuparem pouco espaço que hoje já não faz falta, encontram-se videiras que sugerem a produção de vinho e bagaceira.
Também as oliveiras têm ar de ser apanhadas, apesar de já não serem objecto dos cuidados que eram antigamente, como seja cavá-las à enxada, e estrumá-las com mato, vindo de longe ou perto. Muitas têm vindo a ser rebaixadas, de modo a poderem ser apanhadas por descendentes receosos das alturas ou idosos que já não podem subir escadas! O engenho serrano omnipresente! Por alguma razão simbólica, a que não será alheio o espírito de poupança das populações rurais, a azeitona ainda é bastante apanhada, sendo o azeite feito nos lagares de Bobadela, Espariz, Vila Nova do Ceira e outras localidades, situadas a distâncias significativas. A eficácia do esforço é duvidosa, considerados os custos de produção e os preços do produto no mercado, mas insiste-se. É mesmo compulsivo! Entre Ádela e Açor, encontram-se as tulhas e o lagar, tristemente já desmoronados, que antigamente serviam ambas as povoações. As tulhas eram pequenas casinhas, como as existentes no lagar da Cabreira, onde a azeitona era conservada em sal, até chegar a sua vez de ser moída.
No campo da pastorícia, existe gado – cabras e/ou ovelhas – em todas as localidades por onde a caminhada passará. Provavelmente não será visível, mas as “caganáteas” nos caminhos sugerem a sua presença recente. Também há abelhas esvoaçantes e colmeais que produzem excelente mel derivado maioritariamente das diferentes espécies de urze (moita, queiró, magurice e negrela). Vestígios de actividades passadas são, também, as tigelas da resina que se encontram escondidas debaixo do mato ou aquele pedregulho (início da subida para Ádela), trazido às costas sabe-se lá de onde, que ostenta um orifício redondo, a remeter para a extracção da pedra recorrendo à pólvora.
Nas povoações, o casario, constituído por velhas e novas, grandes e pequenas casas em xisto e alvenaria, é muito eloquente a falar da trajectória das famílias pelas andanças da vida e do mundo, reflectindo ligação às origens e, muitas, sucesso e mobilidade social ascendente. Tratando-se, em grande medida, de segundas e terceiras casas, remetem para um significativo poder económico, associado ou não a estatuto e prestígio social. Designadamente no tipo de pedra e nos restantes materiais que utilizam, as casas mais antigas, como outros componentes do património edificado, evidenciam a simbiose e a interdependência entre o homem e o ambiente circundante, ao mesmo tempo que patenteiam a arte e o engenho dos que as construíram, no presente ou no passado. Podem ver-se, a testemunhar a sucessão das épocas, telhados combinados de lousa, telha de canudo ou marselha, janelas com laje ao alto a servir de ombreira, padieiras e soleiras gigantescas em castanho ou laje, velhas portas que rangem sobre mancais e que fecham com tranqueta ou carvelho.
O carvelho só era usado nos currais, ao contrário do que sugere a sua aplicação generalizada em Fajão, no âmbito da recuperação como Aldeia do Xisto. Os utensílios velhinhos que se vêem usados como vaso para plantas reflectem o espírito de poupança rural e, para alguns, o apego aos objectos enquanto produto e reflexo da actividade humana. Repare-se, também, nas paredes e paredões que sustentam os “combaros” e os caminhos (servindo alguns, simultaneamente, para encaminhar as águas pluviais), nas pedras ao alto ou nos marcos que estremam com o vizinho terrenos ou sortes de mato já de si diminutos, mas que o sistema de herança igualitária transformou em ínfimos. Alguns marcos encontram-se pintados de branco ou exibem ao lado um outro em cimento. É uma estratégia destinada a facilitar a sua localização por parte dos descendentes, o que, uma vez mais, revela o amor à terra-solo. Tudo património construído, como os pontões, os poços e as levadas (inclusive a chamada Levada dos Mouros) que importaria preservar, e colocar ao serviço do futuro, transformando as aldeias e a serra em eco museu vivo, humanizado e aberto. Pena que tanto se invista nuns sítios e tão pouco em outros!


2. Da flora

Apesar da desertificação areenta e verde, que ameaça as espécies mais vulneráveis, e dos incêndios que têm reduzido a massa genética, a biodiversidade na zona é grande, sendo a flora muito rica em herbáceas, arbustos e árvores autóctones sobreviventes das alterações climáticas e da intervenção do homem com vista à sua própria sobrevivência. É uma miríade assombrosa de grandes e pequenas plantas que não sabemos classificar, mas que bem mereceriam ser objecto de estudo aprofundado. Entre as espécies autóctones, contam-se os castanheiros – alguns centenários ou já transformados, pela velhice ou pela doença da tinta, em tocos gigantescos que lembram fantasmas e monstros –, o carvalho por aqui designado no feminino, o folhado, a aderneira e o sobreiro. Predominam, no entanto, as espécies invasoras, como o pinheiro, o eucalipto ou as pestes das faias, que não param de se multiplicar tudo consumindo à volta. Não deixam, contudo, de ser árvores bonitas: os pinheiros com as suas medranças e cocas vazias dos bichos (processionárias) regressados à terra; os eucaliptos imponentes a emergirem do solo furando o céu à procura de luz e calor, as faias tingidas de amarelo, na altura da floração. Dando que pensar, são bem interessantes as árvores e arbustos que se encontram a morrer de pé, cobertos de musgo ou de um fungo esbranquiçado que os faz parecer nevados.
Surpreendentemente para alguns visitantes, há ervideiros (medronheiros) em vários sítios e a medronheira é excelente! Cobertos com a flor e o fruto ao mesmo tempo, são deslumbrantes em Outubro. Sendo arbustos, repare-se no porte arbóreo que alguns ostentam! Apesar do tempo que não foi favorável, em finais de Abril, espera-se que a serra se apresente fascinantemente vestida de cores e tonalidades que variam consoante a luz e as espécies de mato dominantes: o tojo, a carqueja e as giestas a vestirem-na de amarelo; os diferentes tipos de urze, de vermelho ou branco; o rosmaninho, de roxo; as cinco chagas (estevas) e os sargaços, de branco …
Passando às herbáceas a propósito dos sargaços, nas encostas solarengas, levantando-lhes as fraldas, talvez se tenha a sorte de encontrar pútegas. São lindas e comestíveis, quando maduras, espremendo as tetinhas redondas directamente para a boca ou para uma pedrinha a servir de prato, como fazíamos na infância. Igualmente comestíveis são os “peidos de velha”, que podem nascer mesmo no meio do caminho. São uns fungos de interior cremoso e castanho, que se transforma em pó quando seco. Se acidentalmente pisados, lançam uma grande poeirada! Abundam as ervas medicinais, e são incontáveis as “florinhas” encantadoras que nascem e alegram por toda a parte.
Quando da caminhada, as cantarinhas e as flores de pão e leite, de beleza e singeleza comoventes, já terão secado. Mas será possível observar, a emergirem de buraquitos nas paredes, os conselhos e o arroz com que cozinhávamos em pequenos, as violetas selvagens ou os estoirafóis garridos que poderão ser estoirados na palma da mão. Verificando-se previamente se estão livres de abelhas ou zângãos zangados!


3. Da fauna

Os mamíferos de médio e pequeno porte e as espécies cinegéticas são escassos. Têm sido dizimados pelos incêndios, pela fome resultante do pouco que os humanos cultivam para com eles partilhar, pelos laços e outras violências que matam, ao contrário dos do Principezinho (Antoine de Saint Exupéry) que cativam e prendem pelo afecto. A ausência de imagens neste tópico traduz, precisamente, a raridade dos bichos, mas também a imperícia da observadora! Ainda assim, dizem que abundam os javalis. Como não gostam de concentrações humanas, os caminhantes apenas poderão aperceber-se da sua presença mais ou menos recente, através do fossado das bermas dos caminhos e dos topos desmoronados das paredes que eles destruíram, à procura de raízes, formigas e outros bichitos desenxabidos. Fome, a quanto obrigas! Nos barrocos e pinhais, do topo das árvores poderão estar a espreitar, comodamente sentados ou a saltar de ramo em ramo, com o rabito farfalhudo a servir de alavanca, esquilos curiosos pretos e acastanhados. Apesar de rara, também da raposa será possível encontrar notícia, através dos excrementos diarreicos e do cheiro desagradável a “raposum” que deixa nos caminhos. Tola, a anunciar aos quatro ventos que anda por perto! De resto, apenas poderemos imaginar, a dormirem na toca fofa ou a tremerem de susto com a proximidade dos caminhantes, gatos-toirões e saca-rabos sobreviventes da adversidade que os aflige. Como às pessoas! Estando próximo o dia das cobras (1 de Maio), poder-se-á encontrar alguma a espreguiçar-se ao sol. Metem medo, mas são muito úteis e inofensivas, com excepção para as víboras. Mas essas costumam andar escondidas!
No campo das aves, mais observável, será possível ver o melro, o macho muito preto luzidio e de bico amarelo, a fêmea um pouco mais acinzentada, mas ainda assim muito bonita. Quando se deixam apanhar, a esgravatar a terra húmida à procura de minhocas, partem esbaforidos parecendo gargalhar trocistas da nossa falta de asas! Sendo arautos, tal como os gaios, estão apenas a avisar da nossa presença indesejada! Pretos são também os corvos que grasnam contentes, dizem que a trazer mau agouro. Em contrapartida, os seus primos gaios são exuberantemente garridos, atrevidos e vorazes. Comem ou levam tudo, contribuindo para a regeneração ambiental, através dos frutos que perdem pelo caminho! O cuco andará por aí a dizer cu-cu, já que entre Março e Abril ou é morto ou não quer vir. Poderá ser uma ave cinzentona de penas e comportamento, mas não deixa de ser uma companhia simpática! Embora persista um ou outro exemplar de ave de rapina, provavelmente o milhafre, raramente se vê. Na eventualidade de se verem perdizes, são só as sortudas que restaram da última largada e caçada. Embora já tenham sido mais, será possível avistar a rola e o pombo bravo, bem como aves miudinhas de que constituem exemplo o pardal e o pisco. Se fosse noite, ouviríamos a coruja a apupar chamando, encontraríamos um ou outro mocho a caçar insectos entontecidos pela luz, entristeceríamos ao reparar que os morcegos praticamente desapareceram. Como entristecemos sempre que vemos a diferença e a diversidade a perderem-se, ou a serem ameaçadas, sejam elas humana, ideológica, cultural ou ambiental.
Este é apenas um olhar, um ponto de vista de um determinado ponto de vista. Não sendo nem exaustivo, nem científico, com outros, ficaremos mais ricos.
Lisete de Matos
in Jornal de Arganil, de 15/05/2008

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