quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Natal Inesquecível

Tinha eu os meus 17 anos quando na véspera do Natal fui escalado para ir ao Rabadão retirar cerca de 30 quilos de volfrâmio, que tinham deixado escondido no mato e se destinavam ao contrabando.
Fui à Várzea, comi uma sopa e voltei a Góis já depois das dez da noite. Por caminhos e atalhos, pouco usados, lá cheguei ao local e carregando o saco às costas segui pelo leito da ribeira do Mota, até ao lagar, atravessei a ribeira das Senhoras da Guia e dirigi-me ao açude do Rio Ceira ao cimo da Quinta do Baião.
Uma oliveira mais grossa, no olival, deu-me um susto de eriçar os cabelos, que nessa altura ainda tinha, e me fez tremer de medo. Era o companheiro que se tinha adiantado do lugar onde tínhamos combinado encontrar-nos, e viera ao meu encontro.
Sempre apressados dirigimo-nos para o açude. O rio levava bastante água e só se poderia atravessar tirando a roupa. Assim fizemos, e com ela fizemos uma trouxa que atámos por cima do saco do volfrâmio, e pé ante pé, apalpando onde punhamos os pés, lá conseguimos chegar ao outro.
Escorrendo a água do corpo, da cabeça aos pés, vestimos novamente a roupa, agasalhamo-nos bem e partimos, afastados uns 50 metros um do outro, de modo a evitar sermos apanhados juntos.
Chegados à estrada, olhámos para trás, e só nessa altura verificámos que a quinta estava toda branquinha, coberta de geada e até a própria estrada era um alvo lençol.
Estugamos o passo e pouco depois entravamos em casa, escondemos em lugar seguro o minério, e bem quentes da caminhada, sentamo-nos à lareira, onde minha Mãe fazia filhós.
A cafeteira estava ao lume, mas outra, com vinho, foi posta a aquecer e num instante já uma caneca de vinho quente, com café e mel, e filhós, nos deliciava.
O fogo crepitava, com grandes labaredas e com a família que estava a consoar comemos a refeição cantando canções natalícias, esquecemos o frio que fazia lá fora, pois todos estávamos bem quentinhos.
Quando era meia-noite a minha mãe entregou-me um prato de filhós e bolos para ir levar a uma família necessitada, que vivia a cem metros de nossa casa, e que mal tinha comido umas colheres de sopa, de couves estremes, como disseram.
Na lareira, as mulheres com xailes pelas costas, nem queriam sair da lareira, pelo calor do ambiente. As crianças já dormitavam e começavam a ser levadas para as suas camas, onde punham botijas com água quente, para não sentirem frio.
Depois de ter comido o bacalhau, a galinha assada, o pão-de-ló, as filhós com mel, coscorões, bebendo uns copos de vinho e depois do vinho do Porto, cada um procurou a sua cama onde botijas já aqueciam os leitos gelados.
Mesmo assim as camas estavam quase geladas. Lençóis de linho, cobertores de para, e cobertas de trapos quase não nos deixavam mexer mas mesmo assim sentíamos frio.
Alguns diziam que não tinham frio pois usavam duas botijas. Uma aos pés com água quente e outras na cabeceira com aguardente.
Adormecia-se em paz e tranquilidade e dormia-se até as crianças nos virem acordar na manhã para receberem as prendas.
Estas eram camisas, blusas, camisolas, cuecas e meias e era o Menino Jesus que tinha ajudado o Pai a ter dinheiro para as comprar.
Nesse tempo havia verdade e não se enganavam as crianças com o Pai Natal.
Depois ia-se à Missa, beijava-se o Menino e mirava-se o Presépio e os padrinhos davam uma peça de roupa, um pão de testa ou um bolo da Várzea, que íamos comendo nos dias seguintes, enquanto nos soava aos ouvidos o cântico:
Alegrem-se os céus e a terra, / Cantemos com alegria, / Já nasceu o Deus Menino. / Filho da Virgem Maria.
Era-se feliz nesta quadra do Natal e acreditava-se que a vinda do Menino podia tornar o Mundo melhor.
Fracassou o Menino? Não. Fracassámos nós, que não soubemos até hoje pôr em prática a mensagem de Paz e Amor que ele nos veio trazer...
Matos Cruz
in O Varzeense, de 15/12/2007

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