sábado, 24 de fevereiro de 2007

Vigiando das Caveiras

Ao longo dos tempos e com o corre-corre do dia-a-dia, muitos de nós, pessoas comuns, esquecemo-nos do que em tempos gostámos, e que em outras alturas mais tenras das nossas vidas dissemos não querer perder. Falo-vos de jovens, seres humanos da minha idade, com o mesmo "stress" profissional, familiar, e sem cabeça para se lembrarem da muita "água que já não move moinhos"... Divagando nos meus pensamentos e memórias e, fazendo uma análise do que já foi inúmeras vezes analisado, penso que esta é a minha vez de escrever para publicamente também eu, comentar o que já por outros grandes homens e mulheres, relativamente a outras coisas do género, foi e será comentado.
Como estava dizendo; divaguei por algumas horas, ou talvez durante uns dias ou semanas, se não meses, e quem sabe se até mesmo, há já alguns anos, sobre a "malta" da minha idade, a terra dos meus avós, os amigos de infância com quem brincava lá na aldeia, e nestes pensamentos, juntei uma pitada de nostalgia das festas e romarias, colectividades regionalistas (q.b.) e depois enfiei tudo dentro de um imaginário misturador de lembranças, fiz um batido, e de tão saboroso ficou, faço questão de o partilhar convosco em palavras simples.
Lá na minha terra, como costumo chamar, lembro-me desde sempre, de uma obra feita pela colectividade lá da aldeia, que era, e é, a casa do convívio. As primeiras recordações que tenho dela são que era cor-de-rosa e que na periferia desta casa, um muro baixinho ladeava um género de jardim sem flores, cheio de ervas secas que servia de estendal para a roupa dos habitantes e para pastagem dos cabritos que se iam matando durante o ano. O chão em volta da mesma, era em terra batida, havia (e ainda há) um pinhal onde ainda hoje existe uma torneira, antigamente um género de chafariz, que ficava no alto de um montinho de terra.
Era eu ainda muito garoto quando uma vez, nesse chafariz, um primo meu já com uns largos anos de idade e muito divertido, decidiu fazer para os miúdos que por lá andavam a reinar, uns apitos que produziam um som mais digno de um cometa, apitos estes, a quem ele chamava de gaitas. Usava o coto de uma cana de foguete e com a navalhita que trazia sempre no bolso, cortava daqui, basbastava dali e depois de fazer o teste ao "instrumento" já nos entregava com um grande sorriso o seu produto artesanal... Lá andávamos nós todos pomposos a tocar a gaita, com um som tão estridente, que as nossas mães até se riam!
No mesmo montinho onde estava o chafariz, por vezes também havia provas desportivas entre os rapazes mais aventureiros. Eu e os meus camaradas de brincadeira (alguns deles lisboetas, outros residentes) tínhamos por hábito descer o dito monte sentados num qualquer cartão que encontrássemos esquecido num "quelho" qualquer, rompendo assim as roupas, sujando-nos todos de terra, do verde da erva e por vezes lá ficavam umas mossas nas canelas ou umas queimadelas no rabiosque feitas por uma pedra que no meio de tal escorregadela não se desviava do caminho...
Nesse pinhal, lembro-me de uma vez, em que, em conjunto com um primo afastado, plantámos dois pinheiros que nunca vieram a nascer. Ainda me lembro do projecto que era simples e de fácil execução: escavámos uns dois centímetros na terra com as caricas dos sumos que tínhamos acabado de beber, e nos buracos, cada um meteu um pinhão vindo do bolso de um de nós. Tapámos o buraquito e regámos cada um a sua cova, com duas mãos de água em concha. Para que no futuro, soubéssemos qual era o meu e o dele, por cima da terra regada deixámos à superfície as caricas de cada um, para que não houvesse discussão possível em futuras heranças...
Da parte de trás da casa do convívio, havia um espaço entre o edifício e o barroco onde estavam situadas as casas de banho. Nelas, cheguei a tomar banhos de água gelada... Lembro-me que começava por molhar a ponta dos pés e das mãos, borrifava o cabelo, e então, depois esfregava-me com o género de uma pasta de terra e espuma; tudo isto só para não me meter debaixo daquela assustadora e arrepiante corrente de gelo molhado... Com o banho tomado e quando chegava a casa, a minha mãe lá me dava banho numa bacia com o precioso líquido quentinho. Enfim, sujávamo-nos tanto que a minha mãe até mostrava às primas ou amigas que passassem à porta a sujidade da água... Uma vez ouvi-a dizer, para alguém: "...- vê lá tu que a água de lhe ter lavado a cabeça era só terra, não sei o que estes miúdos fazem nem onde andam para ficarem assim..."
Dentro da casa cor-de-rosa, havia (e ainda há) muita alegria e recordo-me com bastante saudade das pessoas que a frequentavam, conversando, cantando, bailando ou simplesmente bebendo o seu copito ou os seus "copões"... Lembro-me tão bem como se estivesse lá... Lembro-me de quando já era um rapazote, nos bailes que por lá havia, eu a dançar com a minha prima, por vezes quase que nos esbarrávamos nos pilares que existiam no meio da sala...
Quando chegava a hora das escondidas, era bem melhor, porque todos jogávamos: rapazes e raparigas. Chegávamos ao ponto de sermos mais de 20 a escondermo-nos. O local da contagem, era sempre o canto entre a porta da capela e a da sacristia e o pobre desgraçado que ficasse a contar, por vezes cansava-se das malandrices de alguns que se iam esconder muito longe, ou então, iam para casa e aí era a altura de se ouvir na aldeia todo o famoso "!!! Arrebenta a bola!!!". Alguns escondiam-se dentro dos tanques do lavadouro que ficavam atrás da capela e um cúmplice, que ficava de fora, fazia sinal pela janelita ao escondido, quando fossem quase surpreendê-lo. Ai de quem estivesse dentro do tanque, após o sinal do "sócio", pulava do tanque e pregava um valente susto ao outro...
Ainda nos lavadouros, houve alturas em que tínhamos o hábito de nos empoleirar nas portas e andar para trás e para a frente, vezes sem conta... Ainda hoje, sempre que por lá passo e vejo as marcas das portas na perede, não consigo deixar de sorrir, ao saber que aquelas marcas são as nossas assinaturas de quando éramos moços!
Ao escrever tudo isto, não escondo que uma enorme avalanche de lembranças me inunda a cabeça tornando-se muito complicado descreve-las. Muita tinta ainda haveria para gastar se quisesse contar mais peripécias desses tempos de petiz, vividos na melhor idade da minha vida.
Foram felizes, os momentos de infância que passei na minha terra, sempre a brincar e com muitos amigos com quem ainda hole convivo mas sem andar em cima das portas do lavadouro...
Falando agora de coisas não tão agradáveis quanto gostaria de falar:
Todos esses meninos e meninas que em tempos se divertiam nessa bela aldeia da encosta da Serra das Caveiras, hoje são homens e mulheres, alguns casados e com filhos e isso não os difere de mim, pois estou em igualdade de circunstâncias e também esse facto, não deixa em branco um passado comum a todos: a amizade, o convívio e o gosto em pisar esse chão que tanto prazer nos deu. Talvez por questões familiares, eu nunca tenha deixado de visitar tal beleza serrana, mas se não me fosse possível visitá-la com a assiduidade que desejaria, uma coisa vos garanto. Não deixaria de procurar obter notícias ou contactar essas jovens velhas amizades de outros tempos, mas isto, como se diz em bom português, vai da pessoa.
É certo que há uns anos atrás, essa rapaziada que comigo escorregava o montinho do charafiz da casa do povo e brincava às escondidas na sombra do adro da capela tinha na aldeia os seus avós ou pais, logo, tinham onde dormir e comer. Hoje, devido à imparável lei da vida, esses avós ou pais, já faleceram, ficando assim as casas ao abandono pois alguns dos filhos ou netos, não voltaram mais. Essa rapaziada nova, por comodismo ou talvez por outras razões não vão "à terra". Uns dizem que fica longe, outros dizem que já não sabem o caminho, outros não têm onde ficar, outros há até, que dizem que não conhecem lá ninguém... Concordo que alguns desses motivos até sejam verdadeiros mas pensem bem: penso que até nem fica muito dispendioso e/ou cansativo fazer uma visita nem que seja um dia, uma vez por ano à terra que os viu sorrir, crescer e brincar! Reparem que com uma nota das da nova moeda se faz o trajecto e além disso, metade dos dedos de uma mão chegam para contar as horas que se perde na viagem! Pensem nisto. Torna-se necessário reavivar a memória dos jovens, na casa dos 30 anos, para que não percam o contacto com as suas origens. O desinteresse pelas nossas aldeias nem que seja apenas no Verão, tem de ser combatido, e a melhor forma de o dizer é abordar as pessoas em questão e perguntar-lhes o que se passou! Torna-se imperativo dizer-lhes por exemplo, que a fonte que lhes matava a sede com aquela água fresca e cristalina ainda está no mesmo local, que as serras que desapareciam na imensidão do horizonte ainda estão lá e que o nascer e pôr do Sol, visto com os pés assentes nas nossas origens não deixou de ser um extraordinário relaxante!
Serei apenas eu que considero magnífico o som da água a correr na ribeira, o vento a fazer dançar os pinheiros e aquele cheirinho da lenha que vem dos fornos a cozer a broa ou das chaminés fumegantes no Inverno?
Como sou membro de uma colectividade regionalista e sócio de outra, esses factos também me aproximam mais das minhas origens e se querem que vos diga sinceramente, sinto-me muito bem em fazer tudo o que está ao meu alcance para que "a coisa funcione".
Em tempos recentes, ao dizer a um indivíduo meu conhecido que tinha sido eleito para ingressar na direcção da colectividade da minha terra e o quanto me sentia orgulhoso disso, ouvi um comentário nada simpático, a dizer que nestas coisas de regionalismo e comissões de melhoramentos, só andam os gajos das paródias, os que procuram protagonismos e bêbados. Como todos sabem nada disto é verdade.
Para estar numa colectividade e ser seu timoneiro ou parte da equipa que o acompanha, basta apenas ser empreendedor e lutar pela causa, pela união e pela terra em questão! Tem que se ter uma agradável paixão.
Apenas quero aqui deixar no meio de tantas e diferentes emições, ditas de forma não mais correcta ou de maneira confusa, o meu apelo a todos sem excepção.
Novos, semi-novos, maduros e semi-maduros; passem a palavra, vão aparecendo nas vossas aldeias e não fujam nem se afastem das colectividades. Peço isto, pois, não me agrada nada a ideia de visitar a minha terra e pensar que sou o único a faze-lo.
H. Miguel Mendes
in O Varzeense, de 30/03/2006