domingo, 15 de outubro de 2006

A passagem por Góis de José Saramago

Romancista, poeta e dramaturgo autodidacta, José Saramago é actualmente o escritor português mais traduzido, mais lido, mais conhecido e distinguido no estrangeiro. O que muitos goienses desconhecem é que o escritor passou pela vila, tendo registado o facto no seu livro, de 1990, "Viagem a Portugal":
"Voltou o viajante à estrada armando na imaginação grandes projectos de teatro e filmes mas felizmente aos poucos o foi distraindo a alta montanha que à direita se ergue, no caminho que o levará a Góis. (...)
Góis vê-se de cima, e tais curvas tem a estrada de dar que quase se perde a vila de vista, julga-se tê-la ultrapassado, e para entrar é preciso, já no vale, fazer largo rodeio. Torna a encontrar o Ceira, que é bem formoso rio quando se mostra, mas esquivo.
Em Góis quer o viajante ver o túmulo de D. Luís da Silveira, atribuído, por quem destas matérias sabe, a Hodart. Pode duvidar-se, porém. Se são de Hodart, e são mesmo, os Apóstolos de Coimbra, aqueles convulsos homens cujas artérias latejam à flor do barro, não vê o viajante que irmandade de criação haja entre eles e este cavaleiro ajoelhado. Bem se sabe que a matéria determina a forma, que a plasticidade do barro sobreleva em valor expressionista a nitidez que da pedra se obtém, mas é com maior relutância que admite a atribuição. Está no entanto pronto a declarar que a estátua ajoelhada é uma obra-prima, mesmo estando tão malbaratada a classificação. E o arco, que não é da mesma mão, resplende de magnífica decoração renascentista. Góis é longe, mas este túmulo exige a viagem. Numa capela lateral encontrou depois o viajante uma singular representação da Santíssima Trindade com a Virgem, dispostas as figuras sobre uma nuvem que três anjos transportam e levam pelos ares, servindo de cabos de reboque, se a expressão é permitida, as pontas dos mantos das divinas personagens. O santeiro que esta peça concebeu e realizou sabia que em nuvens não há que fiar, por um nada se desfazem em chuva, como o viajante tem tido abundante prova, e agora confirmação fugaz quando sai da igreja matriz." ...
in "Viagem a Portugal", de José Saramago, Editorial Caminho

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