Regionalismo goiense: do apego à terra e da notalgia ao fantasma seratista (III)
Importa começar por referir que o Regionalismo ainda permanece como um fenómeno pouco estudado, na sua génese, desconhecendo-se muitos dos seus traços etiológicos e da sua traça psicológica. Trata-se, como explica Nogueira Ramos (2004), p. 29), de "...fenómeno social que nos inícios do século passado despontou na Beira Serra, caracterizando esta pequena região...", a qual nem sequer correspondia, como não corresponde agora, a uma região em sentido institucional ou geopolítico. Será, decerto, um movimento que viu a alvorada a partir das necessidades reivindicativas de uns punhados de cidadãos empenhados em melhorar as condições de vida de zonas que, por força das inércias dos poderes e poderzinhos, estavam, desde sempre, votadas ao ostracismo, esquecidas dos lobbies que, outrora como agora, agitam a vida política e animam as actividades palacianas.
Poder-se-á assentar em que este movimento acentuou a constatação das carências, esquecendo a realidade do interior, já que a macrocefalia da capital empurrava os parcos laivos de progresso para Lisboa, às vezes para o Porto, quase sempre para o litoral, olvidando estes autênticos filhos de um deus menor, as populações das Beiras.
Que buscavam aqueles Homens que se envolveram no combate regionalista? Cargos políticos, estilo tachos? É óbvio que não. Até porque aqueles que os detiveram - os tachos ou grandes cargos - também não se lembraram muito destas populações. O reconhecimento público? Também não era por aí que navegavam: do Regionalismo não reza a História...
Buscavam, isso sim, a promoção da melhoria da vida para aqueles que por estas bandas residiam, seus amigos ou parentes, porque sabiam que a vida era aqui mais difícil e que o sol, quando nascia, apenas iluminava e aquecia alguns, sempre poucos, genericamente habitantes de outras coordenadas.
Nogueira Ramos (2004) sintetiza com mestria esta asserção: o reflexo na constituição da identidade cultural, que tem seguramente muito a ver com a fundação deste movimento. Na verdade, os Povos do interior são, como os demais, possuidores de uma matriz cultural que não se compadece com hegemonias, por mais eruditas que se queiram afirmar, nem aceita colonialismos. A tradição colonial portuguesa, produzida ideologicamente para o além-mar, começou a voltar-se para dentro: à medida que, Europa fora, os colonialismos iam sendo sacudidos pelos ventos da História, entre nós subsistiam por via de uma centriptação política já ancilosada, criando escravidões culturais, como se Lisboa estivesse no centro do mundo e o resto do país se limitasse a ser uma espécie de cenário. A aculturação dentro deste território representa um fenómeno ainda não investigado, mas que existiu e fez vítimas, desde logo a seriação de povos e culturas, a xenobofia - por exemplo, no que ao Alentejo tange, bem como nas representações nortenhas sobre Lisboa e o Sul ou sobre o gueto da zona oeste. Uma população é mais do que o elemento humano que a funda: é feita por actores e actos, e também pelo cenário, a paisagem, quase um caleidoscópio gigantesco, com odores e cores, gestos e gestas, amores e ódios, afectos e emoções. Quando os poderes se esquecem desta realidade e teimam em esmagar a autenticidade cultural, a matriz de tudo, ou as tradições, positivas e negativas, cedo ou tarde a revolta nasce. O Portugal demo-liberal, da monarquia constitucional e da miguelisto-absolutista, passou muito ao lado das preocupações de identidade dos povos; mas também da República, apesar de alguns dos seus mentores, mais influenciados pelo livre pensamento e pelo ideário maçónico, haverem propugnado por essa identidade, acabou por se render às conveniências da política, em acepção politiqueira e de caciquismo, tão usual entre nós. Portugal, país estruturalmente católico, era mais facilmente esquadrável na contenção da resignação e do conformismo: sofrer em silêncio, na expectativa da recompensa, razão maior do conformismo, essa praga que Oliverio tão bem retrata (Oliverio, 1985); daí a facilidade com que a mencionada matriz cultural foi sendo vítima de aprisionamento, germinando, contudo, - e felizmente!, o germe da subversão, consubstanciado no Regionalismo nascente.
A justeza das motivações demonstra-se pelo facto de o regionalismo ter sido sempre um fenómeno revestido de transversalidade, congregando monárquicos e republicanos, esquerda e direita, ateus, crentes e maçons, intelectuais e trabalhadores manuais, todos irmanados num objectivo maior, justo e perfeito: a equilateralidade, a equidade e a harmonia da vida social.
Com efeito, esta movimentação arrancou de preocupações e sentidos sociais: um fontanário ou um caminho, uma carreira, uma escola - como em Góis! - ou a ajuda a um irmão cego, internado na leprosaria, a quem se paga um acordeão, ou os jovens a quem se subvencionam os estudos, como sucedeu com os regionalistas da Casa de Góis, traduzem bem a mensagem e a intencionalidade social desta corrente de pensamento, reforçando-se, no que nos toca, com a bem sucedida campanha do Colégio, patrocinada em grande parte pelo Comendador Augusto Rodrigues, e executada com inúmeros sacrifícios pessoais, na presidência de Fernando Carneiro, com a inolvidável contribuição técnica do Eng Rui Cortez e os esforços, entre muitos, do Gualter Nogueira, do Frederico Nogueira de Carvalho e de Leonel Martins Gonçalves.
Escrevi corrente de pensamento porque é disso que se trata: mais do que corrente, em alguns casos, foi uma cadeia de união aquilo que nasceu sob o signo regionalista e, ao mesmo tempo, um conjunto de programas de intervenção.
A cidadania também marca presença neste fenómeno: mas esta proposição decorre directamente da antecedente, já que se privilegiou sempre o lado participativo do ser humano, equacionando-se, no âmbito do regionalismo, aspectos de magna relevância, designadamente a educação, questão saliente num país em que Salazar encerra as Escolas do Magistério Primário e inventara as regentes escolares em detrimento dos velhos mestres-escola, país com o maior indíce de analfabetos durante toda a transacta centúria e culturalmente atrasado. Procurando elevar a cultura das populações, o Regionalismo assumia contornos de subversão: pretendia tornar as pessoas em cidadãos, mais cultos e preparados e vivendo um pouco melhor. E as ditaduras não convivem bem com a elevação cultural... A velha contradição cidade-campo estava também presente: país essencialmente rural, em Portugal acentuava-se esta antítese, gerando dinâmicas confusas e complexas, com todas as fronteiras económicas, sociais e culturais que se erguiam entre as populações. O Regionalismo não queria acabar com a ruralidade nem combatia a urbanidade. Pretendia, todavia, dirimir a contradição e dotar de progresso o mundo rural, de molde a que deixasse de ser um sub-mundo, quase um lumpén. O que era também mal visto pelos poderzinhos de trazer por casa que pululavam e poluíam o país.
Na defesa da culturalidade e das condições de vida das pessoas nascidas e habitantes da Beira Serra, o movimento, ainda que não o propagandeasse, estava a engendrar uma nova racionalidade de vida, uma nova gramática vivencial, reforçando o apego das populações às terras, o orgulhos, uma espécie de nacionalismo e de espírito de pertença regional: repunha-se o orgulho de ser beirão, de ter nascido no mundo rural, por definição inóspito, e já não era vergonha dizer-se que os avós tinham partilhado a mesma sardinha por cinco ou seis irmãos. Serenamente, renascia Portugal: serenamente, sem assombradas fantasias nem ensombradas lutas, refazia-se Portugal, numa movimentação que sugere uma revolução de mentalidades.
(Palestra proferida na sessão solene comemorativa do feriado municipal de Góis)
Carlos Alberto Poiares
in A Comarca de Arganil, de 11/02/2009
Etiquetas: regionalismo
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