Rumo ao Centro
De Montemor-o-Velho até Piódão, na Serra do Açor, passando pela bucólica Lousã, evitámos as cidades e acompanhámos o curso dos rios Mondego, Ceira e Alva em direcção ao coração do país, para redescobrir gentes generosas, uma gastronomia soberba e paisagens pintadas a verde, aparentemente imunes aos nefastos efeitos da civilização.
Aldeias perdidas e novamente achadas, cascatas límpidas, matas protegidas, habitadas por cervos, raposas e javalis preencheram dois dias ao volante que nos apeteceu prolongar pela semana fora.
Dia 1 79 km
Montemor-o-Velho > Tentúgal a Condeixa-a-Velha > Lousã
O nosso périplo teve início no castelo medieval de Montemor-o-Velho, envolto em arrozais e milheirais a perder de vista. Guarda a Torre de Menagem, a Torre do Relógio, o Palácio das Infantas, o Castelejo e a Igreja de Santa Maria de Alcáçova, um dos poucos templos na vila diariamente abertos ao público, sendo a sua arquitectura actual um misto do gótico com o manuelino.
Relvado e ajardinado, o castelo é dos lugares mais aprazíveis desta vila pacata. Ainda para mais está equipado com uma confortável casa de chá de linhas contemporâneas, perfeitamente enquadrada, cuja esplanada nos deixa preguiçosos que nem gatos ao sol. Sabemos, no entanto, que vale a pena vencer o pecado capital para observar as aves – garças e estorninhos aos milhares – que habitam o Paúl do Taipal, a apenas cinco minutos de carro. Com uma vegetação cada vez mais rara de juncos, salgueiros, amieiros, freixos, choupos e nenúfares, entre outras espécies, representa, conjuntamente com os vizinhos pauis de Arzila e da Madriz, um dos últimos exemplos deste tipo de zona húmida na região centro.
Para colmatar o passeio, passe pelo Restaurante Ramalhão. O arroz é a especialidade local, pelo que não deixe de experimentar o “dito” de lampreia à moda de Montemor, o entrecosto de vinha d’alhos com arroz de espigos ou o arroz malandrinho de galinha vadia.
Adie, no entanto, a sobremesa para a próxima paragem – Tentúgal. Afinal, a distância é curta e a estrada um postal fugaz que se espreguiça no doce plano dos campos do Mondego.
São os pastéis que lhe fazem a fama actual, mas Tentúgal é, desde tempos remotos, frequentada pelas mais reputadas e afortunadas famílias. Restam desses tempos magníficos solares hoje arruinados, meia dúzia de igrejas relativamente bem conservadas, algumas praças belíssimas e, claro está, uma das receitas mais afamadas da doçaria nacional, herança carmelita.
A mais antiga doceira da vila, Natália, é actualmente proprietária de uma das nove fábricas/confeitarias que produzem e vendem os pastéis de Tentúgal – a Afonso. Criada em meados de 70 do século passado, esta pastelaria oferece aos gulosos de passagem não só os tradicionais pastéis de Tentúgal como criações originais da família, entre outros doces únicos na região, à semelhança da Espiga Doce. Esta última preciosidade confeccionada à base de açúcar e ovos é a única patenteada pela Afonso e, diz-se, serviu no antigo regime para fazer circular mensagens escritas entre os camaradas do Partido Comunista (era fabricada em Montemor por
um militante, no início do século passado).
Satisfeitas as papila gustativas há que seguir para Conímbriga, onde se encontram os vestígios de uma das mais fulgurantes cidades romanas da Península Ibérica, habitada, pelo menos, entre o século IX a. C. e os séculos VII-VIII da nossa era. Mosaicos, lojas, casas, banhos e até um cemitério constam da exposição a céu aberto, complementada pelo acervo do museu, um conjunto de colecções diversificadas, ilustrativas da evolução histórica do lugar.
Os dias curtos de Inverno ditam, entretanto, a nossa ida para a Lousã. Aguardam-nos Manuel e Maria José, dois apaixonados pela serra que se encontram à frente da unidade de turismo rural Quintal de Além do Ribeiro, onde iremos pernoitar.
A casa, com mais de dois séculos de existência, foi totalmente recuperada, preservando, entre outras relíquias, mobiliário do Romantismo, uma colecção admirável de rádios antigos e uma mala indo-portuguesa onde são servidos os pequenos-almoços.
No exterior, a piscina e o galinheiro fazem as delícias das crianças enquanto os jardins, o quintal e o pomar No exterior, a piscina e o galinheiro fazem as delícias das crianças enquanto os jardins, o quintal e o pomar tranquilizam os adultos. O jantar, se encomendado com antecedência, pode ser feito no Quintal de Além do Ribeiro.
Caso contrário, o restaurante Burgo, junto ao castelo e às piscinas naturais da Lousã, oferecidas pelo rio Ceira, serve os mais soberbos pratos regionais – bacalhau com migas, chanfana, cozido da serra... – com uma mestria difícil de igualar.
Dia 2 73 km
Lousã Z Góis > Arganil ao Piódão
A Lousã é uma caixinha de surpresas tanto para os que preferem as emoções fortes do parapente, do cannyoning ou da BTT como para quem passeia tranquilamente de jipe pelas estradinhas sinuosas da serra homónima. As paisagens, feitas de floresta densa, vales profundos e declives rasgados por riachos e cascatas, são sublimes. Ainda para mais guardam alguns tesouros únicos, tais como uma população crescente de corços e veados fáceis de avistar. Ao nível do património histórico e monumental são particularmente interessantes as aldeias de xisto, há algumas décadas abandonadas, e agora habitadas quer por nacionais quer por estrangeiros, em busca de um quotidiano mais pacato. Merecem, ainda, visita os neveiros, onde no século XVII se acumulava gelo para abastecer a corte portuguesa, nessa altura, já arruinada, mas sempre extravagante e atenta aos luxos de Versailles.
Ao final do passeio, passe pela aldeia do Talesnal e aproveite para tomar um chá de ervas aromáticas biológicas na aconchegante casa Ti’Lena (em homenagem à última habitante da aldeia). Com um pouco de sorte poderá experimentar o bolo de chocolate ou as farófias confeccionados pelas irmãs Lisete e Amélia, as proprietárias desta casa rústica, aquecida por uma enorme lareira.
Góis, em pleno Vale do Ceira, é o nosso próximo destino. Com mais de oito séculos de existência, possui, além das praias fluviais, uma interessante ponte manuelina e uma das mais belas igrejas quatrocentistas do país (a chave encontra-se com a D. Milú, na padaria da vila). Não se fique, no entanto, pelo perímetro urbano, pois este lugar onde o Ceira encontra as serras do Carvalhal e do Rabadão, merece exploração demorada. Suba até ao Penedo de Góis, a 1040 metros de altitude, acessível primeiro de jipe e depois a pé, e deixe-se fascinar pelo voo picado das aves de rapina e pelas vistas sobre as aldeias de pedra em redor.
Se, mais que pela natureza, se interessar pelo património construído, siga antes para Arganil, onde os Paços do Município, a Igreja da Misericórdia (século XVII), e a Fonte de Amandos são os monumentos de maior interesse.
Para o almoço tardio sugerimos o restaurante Gota d’Água, na estrada que vai para Secarias, junto à praia fluvial da Ronqueira, banhada pelo rio Alva. Os grelhados no carvão são a especialidade da casa, mas não faltam os tradicionais pratos de cabrito e a doce tigelada, servidos em doses generosas.
Atravessada a Serra da Lousã, durante a manhã, dirigimo-nos agora para a do Açor, igualmente rica em matas densas e linhas de água cristalinas. Um das mais belas áreas protegidas da região é a Mata da Margaraça. Propriedade dos bispos de Coimbra a partir do reinado de Afonso III, assim parece ter-se mantido até ao século XIX, época em que o regime liberal a considerou parte da fazenda nacional, incorporando-a no património público. Protege um outro tesouro: a bucólica cascata da Fraga da Pena, recanto de xisto e urze, que, adivinhamos, deverá refrescar “meia serra” no pico do Verão.
Estamos já a dois passos do Piódão, uma das dez aldeias históricas de Portugal, classificada como Imóvel de Interesse Público em 1978. Após quilómetros de floresta desabitada, surge-nos como uma aparição com as suas casinhas de xisto equilibradas em socalcos ao sabor do monte.
Tem pouco mais para visitar que a Igreja Matriz (século XVII), dedicada a Nossa Senhora da Conceição, e o museu, mostra da memória colectiva dos habitantes da região.
O que apetece nesta aldeia é calcorrear os caminhitos íngremes de pedra. E, sempre que possível, espreitar para o interior das casas ainda hoje compostas por dois pisos, sendo o térreo destinado à arrecadação das alfaias agrícolas e dos cereais, e o de cima à habitação propriamente dita.Depois, aguarde pelo cair da noite. Piódão ao lusco-fusco parece um presépio com as luzinhas a brilhar, tendo como pano de fundo o pesado silêncio que se abate sobre a serra.
in Rotas & Destinos
Aldeias perdidas e novamente achadas, cascatas límpidas, matas protegidas, habitadas por cervos, raposas e javalis preencheram dois dias ao volante que nos apeteceu prolongar pela semana fora.
Dia 1 79 km
Montemor-o-Velho > Tentúgal a Condeixa-a-Velha > Lousã
O nosso périplo teve início no castelo medieval de Montemor-o-Velho, envolto em arrozais e milheirais a perder de vista. Guarda a Torre de Menagem, a Torre do Relógio, o Palácio das Infantas, o Castelejo e a Igreja de Santa Maria de Alcáçova, um dos poucos templos na vila diariamente abertos ao público, sendo a sua arquitectura actual um misto do gótico com o manuelino.
Relvado e ajardinado, o castelo é dos lugares mais aprazíveis desta vila pacata. Ainda para mais está equipado com uma confortável casa de chá de linhas contemporâneas, perfeitamente enquadrada, cuja esplanada nos deixa preguiçosos que nem gatos ao sol. Sabemos, no entanto, que vale a pena vencer o pecado capital para observar as aves – garças e estorninhos aos milhares – que habitam o Paúl do Taipal, a apenas cinco minutos de carro. Com uma vegetação cada vez mais rara de juncos, salgueiros, amieiros, freixos, choupos e nenúfares, entre outras espécies, representa, conjuntamente com os vizinhos pauis de Arzila e da Madriz, um dos últimos exemplos deste tipo de zona húmida na região centro.
Para colmatar o passeio, passe pelo Restaurante Ramalhão. O arroz é a especialidade local, pelo que não deixe de experimentar o “dito” de lampreia à moda de Montemor, o entrecosto de vinha d’alhos com arroz de espigos ou o arroz malandrinho de galinha vadia.
Adie, no entanto, a sobremesa para a próxima paragem – Tentúgal. Afinal, a distância é curta e a estrada um postal fugaz que se espreguiça no doce plano dos campos do Mondego.
São os pastéis que lhe fazem a fama actual, mas Tentúgal é, desde tempos remotos, frequentada pelas mais reputadas e afortunadas famílias. Restam desses tempos magníficos solares hoje arruinados, meia dúzia de igrejas relativamente bem conservadas, algumas praças belíssimas e, claro está, uma das receitas mais afamadas da doçaria nacional, herança carmelita.
A mais antiga doceira da vila, Natália, é actualmente proprietária de uma das nove fábricas/confeitarias que produzem e vendem os pastéis de Tentúgal – a Afonso. Criada em meados de 70 do século passado, esta pastelaria oferece aos gulosos de passagem não só os tradicionais pastéis de Tentúgal como criações originais da família, entre outros doces únicos na região, à semelhança da Espiga Doce. Esta última preciosidade confeccionada à base de açúcar e ovos é a única patenteada pela Afonso e, diz-se, serviu no antigo regime para fazer circular mensagens escritas entre os camaradas do Partido Comunista (era fabricada em Montemor por
um militante, no início do século passado).
Satisfeitas as papila gustativas há que seguir para Conímbriga, onde se encontram os vestígios de uma das mais fulgurantes cidades romanas da Península Ibérica, habitada, pelo menos, entre o século IX a. C. e os séculos VII-VIII da nossa era. Mosaicos, lojas, casas, banhos e até um cemitério constam da exposição a céu aberto, complementada pelo acervo do museu, um conjunto de colecções diversificadas, ilustrativas da evolução histórica do lugar.
Os dias curtos de Inverno ditam, entretanto, a nossa ida para a Lousã. Aguardam-nos Manuel e Maria José, dois apaixonados pela serra que se encontram à frente da unidade de turismo rural Quintal de Além do Ribeiro, onde iremos pernoitar.
A casa, com mais de dois séculos de existência, foi totalmente recuperada, preservando, entre outras relíquias, mobiliário do Romantismo, uma colecção admirável de rádios antigos e uma mala indo-portuguesa onde são servidos os pequenos-almoços.
No exterior, a piscina e o galinheiro fazem as delícias das crianças enquanto os jardins, o quintal e o pomar No exterior, a piscina e o galinheiro fazem as delícias das crianças enquanto os jardins, o quintal e o pomar tranquilizam os adultos. O jantar, se encomendado com antecedência, pode ser feito no Quintal de Além do Ribeiro.
Caso contrário, o restaurante Burgo, junto ao castelo e às piscinas naturais da Lousã, oferecidas pelo rio Ceira, serve os mais soberbos pratos regionais – bacalhau com migas, chanfana, cozido da serra... – com uma mestria difícil de igualar.
Dia 2 73 km
Lousã Z Góis > Arganil ao Piódão
A Lousã é uma caixinha de surpresas tanto para os que preferem as emoções fortes do parapente, do cannyoning ou da BTT como para quem passeia tranquilamente de jipe pelas estradinhas sinuosas da serra homónima. As paisagens, feitas de floresta densa, vales profundos e declives rasgados por riachos e cascatas, são sublimes. Ainda para mais guardam alguns tesouros únicos, tais como uma população crescente de corços e veados fáceis de avistar. Ao nível do património histórico e monumental são particularmente interessantes as aldeias de xisto, há algumas décadas abandonadas, e agora habitadas quer por nacionais quer por estrangeiros, em busca de um quotidiano mais pacato. Merecem, ainda, visita os neveiros, onde no século XVII se acumulava gelo para abastecer a corte portuguesa, nessa altura, já arruinada, mas sempre extravagante e atenta aos luxos de Versailles.
Ao final do passeio, passe pela aldeia do Talesnal e aproveite para tomar um chá de ervas aromáticas biológicas na aconchegante casa Ti’Lena (em homenagem à última habitante da aldeia). Com um pouco de sorte poderá experimentar o bolo de chocolate ou as farófias confeccionados pelas irmãs Lisete e Amélia, as proprietárias desta casa rústica, aquecida por uma enorme lareira.
Góis, em pleno Vale do Ceira, é o nosso próximo destino. Com mais de oito séculos de existência, possui, além das praias fluviais, uma interessante ponte manuelina e uma das mais belas igrejas quatrocentistas do país (a chave encontra-se com a D. Milú, na padaria da vila). Não se fique, no entanto, pelo perímetro urbano, pois este lugar onde o Ceira encontra as serras do Carvalhal e do Rabadão, merece exploração demorada. Suba até ao Penedo de Góis, a 1040 metros de altitude, acessível primeiro de jipe e depois a pé, e deixe-se fascinar pelo voo picado das aves de rapina e pelas vistas sobre as aldeias de pedra em redor.
Se, mais que pela natureza, se interessar pelo património construído, siga antes para Arganil, onde os Paços do Município, a Igreja da Misericórdia (século XVII), e a Fonte de Amandos são os monumentos de maior interesse.
Para o almoço tardio sugerimos o restaurante Gota d’Água, na estrada que vai para Secarias, junto à praia fluvial da Ronqueira, banhada pelo rio Alva. Os grelhados no carvão são a especialidade da casa, mas não faltam os tradicionais pratos de cabrito e a doce tigelada, servidos em doses generosas.
Atravessada a Serra da Lousã, durante a manhã, dirigimo-nos agora para a do Açor, igualmente rica em matas densas e linhas de água cristalinas. Um das mais belas áreas protegidas da região é a Mata da Margaraça. Propriedade dos bispos de Coimbra a partir do reinado de Afonso III, assim parece ter-se mantido até ao século XIX, época em que o regime liberal a considerou parte da fazenda nacional, incorporando-a no património público. Protege um outro tesouro: a bucólica cascata da Fraga da Pena, recanto de xisto e urze, que, adivinhamos, deverá refrescar “meia serra” no pico do Verão.
Estamos já a dois passos do Piódão, uma das dez aldeias históricas de Portugal, classificada como Imóvel de Interesse Público em 1978. Após quilómetros de floresta desabitada, surge-nos como uma aparição com as suas casinhas de xisto equilibradas em socalcos ao sabor do monte.
Tem pouco mais para visitar que a Igreja Matriz (século XVII), dedicada a Nossa Senhora da Conceição, e o museu, mostra da memória colectiva dos habitantes da região.
O que apetece nesta aldeia é calcorrear os caminhitos íngremes de pedra. E, sempre que possível, espreitar para o interior das casas ainda hoje compostas por dois pisos, sendo o térreo destinado à arrecadação das alfaias agrícolas e dos cereais, e o de cima à habitação propriamente dita.Depois, aguarde pelo cair da noite. Piódão ao lusco-fusco parece um presépio com as luzinhas a brilhar, tendo como pano de fundo o pesado silêncio que se abate sobre a serra.
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